+ Direito da Informática

Blogue complementar ao Direito na Sociedade da Informação LEFIS

domingo, outubro 29, 2006

 

"Cartão Único"

"Não será, talvez, motivo para tocar os sinos cívicos a rebate e não estaremos decerto perante nenhuma conspiração do Big Brother, mas a proposta governamental da criação do 'Cartão do Cidadão', que vai concentrar num único cartão dados respeitantes à nossa identificação civil, fiscal, de segurança social e de saúde, não é seguramente motivo para estarmos descansados e confiantes.
O recente parecer da Comissão Nacional de Protecção de Dados (CNPD) sobre esta matéria, elaborado a pedido da Assembleia da República, não pode ser ignorado ou tratado de uma forma ligeira. Comentários do género, 'Sim, sim, vamos mandar fazer uns estudos complementares; não há problema...', num tom 'encomenda-se aí um Estudo de Impacte Ambiental e o assunto está resolvido...', não são seguramente suficientes, até porque 'de boas intenções está o inferno cheio' e é muito fácil alargar os poderes (e os saberes) do Estado mas é muito difícil, depois, restringi-los.
Em primeiro lugar, esta proposta governamental, conforme refere a CNDP, 'não traz consigo qualquer estudo que avalie o risco para a privacidade e para a protecção dos dados pessoais da introdução do cartão do cidadão, não traz qualquer estudo sobre os riscos e perigos efectivos para a segurança e fiabilidade do sistema de informação adoptado para tão grande mudança e concentração de informação, nem traz nenhum estudo que avalie o impacte positivo - o proveito para a segurança dos documentos de identificação, o proveito para o desempenho da Administração Pública e o proveito para os cidadãos - pretendidos com a introdução do cartão do cidadão'.
Esta crítica 'prévia' por parte da CNDP é muito grave: no fundo, estamos a querer avançar num caminho de que será difícil retroceder, numa área particularmente sensível que toca na privacidade e na liberdade dos cidadãos, sem haver um estudo sério e responsável sobre as vantagens e os riscos de se avançar por tal caminho. É um pouco incrível, mas parece ser verdade...
Claro que isto será pouco relevante para quem está certo de possuir a verdade e de trilhar o bom caminho, mas para os não crentes, para os que têm dúvidas e sabem que errar é humano, todo o cuidado é pouco.
O Governo, por exemplo, refere na sua proposta que, quanto aos padrões de segurança, aquela incorpora os patamares delineados no Regulamento (CE) nº 2252/2004, do Conselho, de 13 de Dezembro, mas a CNDP, independentemente da exacta aplicabilidade desse diploma europeu, chama a atenção para uma realidade que é particularmente verdadeira no nosso país: 'a segurança da informação depende, (para) além das regras proclamadas em instrumentos normativos e regulamentares, do acompanhamento pontual da evolução tecnológica, da antecipação e perseguição das técnicas utilizadas pelos agentes de 'ataques informáticos', das regras de operacionalidade, da observância de boas práticas e da efectiva fiscalização'.
Todos sabemos como somos 'bons' a elaborar leis e regulamentos e como somos 'maus' a fiscalizar o seu cumprimento. Os exemplos concretos destas nossas características são inúmeros, isto para não falar dos casos das leis que são mesmo criadas para não ser cumpridas e para as quais não fará qualquer sentido falar de fiscalização...
A nossa Constituição, louvavelmente, consagra a proibição da atribuição de um número nacional único para cada cidadão. E, como refere a CNDP, com tal disposição, por um lado, 'proíbe-se a identificação directa dos cidadãos através de um número único e imutável, proibindo-se, assim, a eliminação da personalidade dos indivíduos e da sua dignidade humana', levando a que 'não se pode chapar na testa de um indivíduo que ele é o número 3 milhões' e, por outro lado, 'proíbe-se a concentração da (tendencial) globalidade da informação atinente a um cidadão com uma única chave de acesso a essa informação, impedindo-se, também, que aquele mesmo resultado de despersonalização seja alcançado através da junção de toda a informação existente nas bases de dados do Estado e da possibilidade de compor uma imagem completa da pessoa'.
E se a proposta do 'Cartão do Cidadão', à partida, respeita tal proibição, já que no cartão figurarão quatro números distintos - o número de identificação civil, o número de identificação fiscal, o número de utente dos serviços de saúde e o número de identificação da Segurança Social -, a verdade é que, 'à chegada', não há garantias seguras de que assim será.
A CNDP no seu parecer, alerta para o facto de que os quatro números de identificação existentes no cartão, 'todos seguidos e justapostos, podem funcionar como um verdadeiro número único (composto por códigos numéricos significativos, imutáveis e exclusivos) quer de identificação nacional do cidadão, quer de chave de acesso à totalidade da informação' sobre a pessoa em causa. Sendo certo que haverá um número de identificação do cartão para fiscalizar e impedir o uso de cartões cancelados. E, sendo esse número 'exclusivo e imutável durante um prazo alargado de tempo", pode o mesmo "funcionar como verdadeiro número único, quer de identificação directa do cidadão, quer de acesso à informação global que permite criar a sua imagem completa'.
Não se pense que os riscos são só estes, porque o 'Cartão do Cidadão' vai servir para muitas e variadas tarefas e funções, públicas e privadas, e com a facilidade com que, em qualquer serviço, se fotocopiam os nossos documentos de identificação, corremos sérios riscos de crescerem exponencialmente as possibilidades de devassa das nossas vidas.
A CNDP, para além dos alertas e de sublinhar a necessidade de estudos complementares, faz variadas sugestões ou propostas para melhorar a proposta de lei que não podem ser ignoradas a bem do futuro de todos nós.
Preocupa-se, também a CNDP, com a supervisão de todo este 'sistema' resultante da criação do 'Cartão do Cidadão' e que, na proposta governamental, é atribuída à Agência para a Modernização Administrativa, organismo criado junto da Presidência do Conselho de Ministros. A CNPD, lembra, a propósito, que 'a supervisão é uma função que deve ser efectuada por entidades com meios e capacidades técnicos indubitáveis e marcadas por inquestionável independência política e administrativa'.
As questões são, pois, muitas e sérias. Será que os senhores deputados vão fazer o que lhes compete ou será que, de mãos dadas, vão despachar rapidamente o assunto?" (Francisco Teixeira da Mota - Público, 29/10/2006)

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