Blogue complementar ao Direito na Sociedade da Informação LEFIS
"Escrever nas receitas com 'letra bem legível' é dever deontológico dos médicos portugueses, mas chegam às farmácias algumas quase indecifráveis. Às vezes é mesmo preciso contactar o clínico para perceber o que lá está escrito. As pessoas são aconselhadas a apontar o nome dos medicamentos ainda durante a consulta.
Mais de metade dos centros de saúde portugueses têm instalado o programa Sistema de Apoio ao Médico (SAM), que permite contornar o problema da caligrafia ilegível através da impressão de receitas preenchidas por computador. São 184 centros de saúde num universo de 357, informa o Instituto de Gestão Financeira e Informática da Saúde (IGIF), que foi quem desenvolveu o programa. O SAM está instalado em 60 hospitais (de um total de 83). Através desta aplicação o médico escolhe um fármaco de uma lista - evitando a consulta de um prontuário terapêutico - onde constam a dosagem e o preço. A escolha é feita no computador. Não é preciso escrever à mão o nome do remédio, preencher os dados dos doentes ou pôr vinhetas - basta depois imprimir a receita, que sai já com os dados. O programa permite o mesmo sistema para as baixas, requisição de transportes e de terapia domiciliária. Mas há quem não poupe críticas à aplicação informática. Para o bastonário da Ordem dos Médicos, Pedro Nunes, o programa que foi desenvolvido por técnicos do IGIF é sobretudo uma ferramenta administrativa de controlo da despesa com fármacos, mais do que um auxiliar da prática clínica. Ficou-se aquém das possibilidades, diz. O objectivo é que até ao final do ano todos os centros de saúde tenham o programa. C.G.
No consultório ouve as indicações do médico mas não memoriza o nome do medicamento que lhe está a ser prescrito. Na receita descodifica apenas as três primeiras três letras do fármaco - Ana... e há um risco que prolonga a palavra. Espera que o farmacêutico decifre o resto. Não é boa ideia. Há pelo menos 11 remédios que começam com esta sílaba e incluem um analgésico, um anti-inflamatório e um antidepressivo.
Quem é que nunca saiu de uma consulta a olhar para a receita sem fazer ideia do que lá está escrito? Várias farmácias de Lisboa contactadas pelo PÚBLICO constatam: a dificuldade em decifrar a letra dos clínicos faz perder tempo e pode gerar erros de medicação. Na Ordem dos Farmacêuticos já houve queixas por administração errada devido a problemas de caligrafia. Concluiu-se não haver motivo para condenação.
Escrever numa receita médica com 'letra bem legível' consta do Código Deontológico dos médicos portugueses, mas até agora ninguém foi punido por incumprimento. Houve duas queixas informais de farmacêuticos para a Ordem dos Médicos (OM) e 'os colegas foram chamados à atenção', diz o bastonário, Pedro Nunes.
Nos EUA os danos provocados por erros de medicação - em que os problemas de caligrafia são uma das causas - estão quantificados: por ano morrem sete mil pessoas por administração ou doses erradas de medicamentos.
Os idosos (porque tomam muita medicação ao mesmo tempo) e as crianças (porque a dosagem exige cálculos baseados no peso) são as principais vítimas, constata a Food and Drug Administration (FDA), o órgão americano que regula o sector do medicamento.
No dia-a-dia são muitas as receitas quase indecifráveis que desencadeiam nas farmácias quase um jogo de adivinhas. E são diversas as estratégias para lidar com o problema. Na Farmácia Mundial, por exemplo, a farmacêutica Rita Monteiro da Silva opta por dividir a palavra em três pedaços para ver que fármacos existem no computador com aquela grafia. Depois a receita passa por todos os funcionários e só se houver consenso é que é aviada. Marina Jerónimo, farmacêutica na Castro Fonseca, diz que faz exactamente a mesma coisa.
A opção seguinte é pedir ajuda ao doente. Para que é o fármaco? Já o toma? Sabe de que cor é a caixa e que tamanho tem? Em desespero de causa, liga-se ao médico para perguntar se ainda se lembra do remédio que receitou àquela pessoa ou então para pedir que consulte a ficha do doente, conta Marina Jerónimo.
'Meia-dúzia de queixas'
O problema é quando não se consegue chegar ao médico. A necessidade de contactos rápidos nesta situação é 'uma preocupação' que já foi discutida entre a Ordem dos Farmacêuticos e a Associação de Médicos de Clínica Geral, que quiseram criar uma rede de contactos que nunca chegou a ir por diante, conta o bastonário dos farmacêuticos, Aranda da Silva.
Sempre que há dificuldades a OM dá o contacto do clínico com a caligrafia difícil, ressalva o bastonário dos médicos. Quando o telefonema é inviável o doente tem mesmo de voltar ao consultório. 'É um dever deontológico não aviar o remédio quando existem dúvidas', esclarece Manuela Pinto Basto, directora técnica da farmácia Lobel.
A solução passa, segundo os profissionais contactados, pela receita electrónica, mas até ver tem sido residual o número de receitas preenchidas informaticamente chegadas a estas farmácias.
Os problemas mais frequentes têm a ver com a dosagem, por os números não serem perceptíveis ou por nem virem mencionados. Em ambas as situações - e caso não se consiga contactar o médico - o farmacêutico é obrigado a vender a dosagem mais baixa ou a embalagem mais pequena. 'É a forma de nos defendermos", mas pode ter como consequência "a ineficácia do tratamento', explica o bastonário dos farmacêuticos.
Se já houve erros? 'Não há nenhuma farmácia que lhe diga que não que esteja a falar a verdade', sublinha a directora técnica da Farmácia do Monte, Aline Aguiar. Já houve 'meia-dúzia de queixas' na Ordem contra farmacêuticos por medicação errada, informa o bastonário. Os erros maiores são na dosagem e um dos episódios levou mesmo ao internamento de uma criança que levou uma dose demasiado alta de remédio. Mas não houve condenações de farmacêuticos porque se concluiu que não havia culpa, por ilegibilidade da receita e porque se tinha tentado contactar o médico, explica.
Segundo a FDA, para prevenir complicações o utente deve sempre apontar, durante a consulta, o nome do medicamento que está ser prescrito e as indicações da sua toma" (Catarina Gomes - Público, 06/08/2006)