Blogue complementar ao Direito na Sociedade da Informação LEFIS
"Uma empresa farmacêutica com sede no Cacém, com 177 trabalhadores, 'colocou câmaras de filmar/vídeo em todo o armazém, as quais foram colocadas em ângulo de forma a abranger todo o espaço onde os trabalhadores exercem as suas funções, incidindo sobre os mesmos, de tal modo que as tarefas que estes exercem estão a ser permanentemente filmadas e gravadas'. Além disso, passaram a existir monitores que visualizam todos os locais de trabalho e os trabalhadores passaram a estar permanentemente sob vigia e observação do operador das câmaras.
Refira-se que a Comissão Nacional de Protecção de Dados (CNPD) tinha autorizado a empresa em causa a proceder à recolha de imagens e som com a finalidade de segurança das instalações, equipamentos, medicamentos e outros produtos de venda em farmácia, permitindo a instalação de 89 câmaras de vídeo que se distribuíam pelo armazém de produtos farmacêuticos, corredores e recepção, áreas administrativas, sala de servers, sala de tesouraria, sala UPS, corredor externo entre a área administrativa e o refeitório. A razão de ser desta instalação de videovigilância e da sua autorização pela CNPD era, assim, a 'segurança dos bens', ou melhor, visava pôr cobro aos furtos de medicamentos e demais produtos da empresa praticados pelas pessoas que tinham acesso à instalações em causa.
O Sindicato dos Trabalhadores de Química, Farmacêutica e Gás do Centro Sul e Ilhas intentou uma acção judicial pedindo que a empresa farmacêutica fosse condenada a retirar as máquinas de filmar dos locais de trabalho onde os empregados exerciam as suas funções cuja actividade era assim permanentemente vigiada, com violação dos seus direitos de imagem, consagrados na Constituiçao e na lei ordinária.
Na 1.ª instância, o sindicato perdeu a acção, 'por se ter entendido que a utilização dos meios de vigilância utilizados era lícita, nas circunstâncias do caso, por ter como finalidade a protecção e segurança de bens e não o controlo do desempenho profissional dos trabalhadores'. Recorreu, então, o sindicato para o Tribunal da Relação de Lisboa.
Este tribunal considerou que, 'embora possa questionar-se o número e a intensidade da videovigilância exercida sobre os trabalhadores', a sua utilização era lícita, confirmando a decisão da 1.ª instância. E, assim, o sindicato perdeu novamente a acção, e as câmaras de vídeo, que, orientadas para os postos de trabalho, permanentemente observavam e filmavam todos e cada um dos gestos de todos e cada um dos trabalhadores, ali permaneceram.
E se já estivesse em vigor a alteração legislativa que 'vem a caminho', a 'questão' morreria aqui. Na verdade, a chamada regra da 'dupla conforme' que, 'a bem da Justiça' e para mal dos portugueses, vai ser uma realidade, determina que uma decisão da 1.ª instância que seja confirmada pelo Tribunal da Relação, apesar de absurda, já não pode ser objecto de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça. O empobrecimento da nossa paisagem jurídica e cultural que tal medida representará é incomensurável.
É certo que ainda não se conhece o texto aprovado em Conselho de Ministros e que, nos comunicados governamentais, é referida a existência de excepções a esta 'castração jurídica e judicial', mas o 'golpe' vai, seguramente, ser profundo...
E nem se diga que se pretende combater a morosidade da justiça, 'desbloqueando' o Supremo, já que não é nos tribunais superiores que os processos se 'arrastam', mas sim nos tribunais de 1.ª instância, como qualquer prático do Direito o sabe.
Mas, voltando à videovigilância: porque a lei ainda o permite, o sindicato recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça (STJ), já que os trabalhadores que representava não podiam fazer absolutamente nada que não fosse visto pelos seguranças e pela administração. Um olhar, uma troca de palavras, um 'palavrão', um momento de cansaço, uma lágrima, um sorriso, um beijo, furtivo ou não, passariam a ser 'propriedade' da entidade patronal...
No STJ, os juízes-conselheiros Fernandes Cadilha, Mário Pereira e Maria Laura Leonardo, tendo em conta os textos legais, consideraram que 'a instalação de sistemas de vídeovigilância nos locais de trabalho envolve a restrição do direito de reserva da vida privada e apenas poderá mostrar-se justificada quando for necessária à prossecução de interesses legítimos e dentro dos limites definidos pelo princípio da proporcionalidade'.
Ora, a protecção da segurança das pessoas e bens, enquanto justificação da videovigilância, tem em vista a prevenção da prática de crimes, pelo que a sua utilização só se justifica em locais (públicos ou privados) onde haja 'um razoável risco de ocorrência de delitos contra as pessoas ou contra o património'. E, lembrou o STJ, recorre-se às câmaras de vídeo porque 'esses locais podem ser frequentados por pessoas anónimas sem possibilidade de qualquer prévio controlo de identificação'.
Ora, neste caso, considerou o STJ, 'não estamos perante uma vigilância genérica de natureza essencialmente preventiva, dirigida a qualquer pessoa que acidental ou esporadicamente interfira no espaço de observação; mas perante vigilância individualmente dirigida, que elege todos e cada um dos trabalhadores como potenciais suspeitos de prática de infracções criminais e que, desse modo, passam a constituir o objecto exclusivo e privilegiado de vigilância'. Isto é, em vez de recorrer a averiguações internas, processos disciplinares ou a queixas-crime pelos eventuais furtos, a entidade patronal passara a vigiar permanentemente os 'suspeitos', isto é, todos e cada um dos seus empregados.
Assim, para o STJ, a videovigilância instalada passara a ser 'uma típica medida de polícia, que apenas poderia ser implementada dentro das competências específicas das autoridades policiais, por períodos de tempo determinados'. Na verdade, uma 'intolerável intromissão na reserva da vida privada, na sua vertente de direito à imagem' dos trabalhadores, e, por isso mesmo, o STJ, no passado dia 8 de Fevereiro, revogou a decisão do Tribunal da Relação e ordenou a retirada da câmaras de vídeo. Desta vez, ainda não havia a 'dupla conforme', e o Big Brother viu-se obrigado a recuar..." (Francisco Teixeira da Mota - Público, 07/05/2006)